Já havia caído a noite quando eu vinha de um encontro com um amor meu,
Cecília. Repentinamente, um senhor por volta dos 60,
recém-saído de um carro, trajando terno, gravata, broche na lapela e óculos de grau abordou-me desculpando-se pela intromissão, mostrando, desta forma, hábitos de sua
educação. Costumo ser solícita com transeuntes e assim procedi, já esperando que me pedisse auxílio acerca da localidade.
Surpreendeu-me quando, no entanto, disse: “Estávamos te observando no carro desde quando você vinha caminhando da outra rua, e não podíamos tirar os olhos de ti. O seu andar é tão bonito, tão elegante, parece que está desfilando, um passo firme...” Porque minha
reação foi um sorriso, ele quis saber se era comum elogiarem minha maneira de caminhar. Respondi que não, mas que, provavelmente, a razão do meu caminhar ser do jeito que é, é o
balé. Ele gostou do fato de eu fazer
balé e me perguntou o que mais eu faço da vida. Eu disse a verdade, “Eu faço Letras na
Uerj”. A esta altura já indagava-me se suas reais intenções eram mesmo somente uma conversa esporádica. Logo eu, que gosto de falar com estranhos. Me contou que é desembargador.
Fez Direito, Letras e Pedagogia. Perguntou mais sobre a minha dança e depois conversamos sobre poesia. “Desculpe-me a pergunta íntima, mas... de que poeta você gosta?” perguntou-me. “Um que eu gosto muito é o Ferreira
Gullar, eu o acho fantástico!” respondi. “Ah, eu acho o Ferreira
Gullar bom, mas ele fala muito de política.” “
Então, é isso que eu gosto.” “Só que eu acho que poesia tem que ser uma coisa de dentro pra fora.” “Ah, nem me fala, isso me traz um angústia...eu fico nessa dúvida.”
Disse-me que gosta de Cecília
Meirelles, sobre quem aliás é sua monografia de Letras. “Eu já li alguma coisa dela em aula, e também tenho desde criança aquele livro dela ‘Ou Isto Ou Aquilo’. Ah, aliás, essa semana mesmo eu me lembro de ter lido um poema dela num texto da faculdade, mas não me recordo do nome.”Eu sabia que o tal poema tinha a palavra “canto”, contudo, não o disse. No fim de nossa conversa sobre Cecília ele me recitou a poesia. Não era justamente a que eu li na segunda-feira? Depois, ao retornarmos a Ferreira
Gullar ele mencionou uma de suas poesias que foi musicada. Não era uma das poesias do
Gullar que eu mais gosto, Traduzir-se?”Antes de voltarmos às nossas normalidades ainda falamos de Guimarães Rosa, Shakespeare. Encantador e muito surpreendente alguém te abordar assim na rua, nessa pós-modernidade louca na qual vivemos cada qual na sua bolha. Meu celular tocou. Acordei. Fui embora. E agora lerei Cecília.